Artigo de Paulo Roberto Martins, sociólogo e coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente (Renanosoma)
O ponto de partida deste artigo: a regulação de uma tecnologia não é um processo exclusivamente técnico.
O desdobramento imediato: um cientista – por mais eminente e especializado que seja nessa tecnologia – não pode ser a única fonte ouvida e levada em conta no processo de regulação.
Onde quero chegar: na regulação da nanotecnologia, seria muito simplista que um cientista 'detentor do conhecimento especializado’ determinasse o que é certo ou errado na redação de um projeto de lei, porque a definição do que é ‘certo’ ou ‘errado’ transborda os limites das precisões técnicas.
Ao transbordá-las, mergulha num oceano de valores; e os valores expressos pelo cientista – ou por sua comunidade científica – não necessariamente seguem a mesma corrente de outras comunidades científicas e de outros segmentos da sociedade brasileira – aí incluídos, é claro, os não cientistas.
O Projeto de Lei nº 6741/2013, de autoria do deputado Sarney Filho (PV-MA), “dispõe sobre a Política Nacional de Nanotecnologia, a pesquisa, a produção, o destino de rejeitos e o uso da nanotecnologia no país”.
PL que foi considerado “uma grande ameaça ao Brasil” pelo Prof. Dr. Fernando Galembeck, em artigo recentemente publicado no Jornal da Ciência.
Meu objetivo neste artigo não é analisar o conteúdo do referido PL, tampouco defendê-lo. Pretendo apenas e especificamente problematizar uma tese usada pelo Prof. Dr. Galembeck em sua crítica ao PL: aquela segundo a qual, embora o PL seja uma ameaça ao Brasil – e, portanto, ao conjunto dos brasileiros –, esse problema deve ser resolvido pelos especialistas em nanotecnologia – e não pelo conjunto dos brasileiros. Uma tese que entende a regulação da (nano)tecnologia como uma questão meramente técnica e, portanto, não segue a mesma corrente do meu ponto de partida.
A tese do Prof. Dr. Galembeck está bastante disseminada no meio científico. Mas, se estou na contracorrente, também não estou sozinho. Cito a Profa. Dra. Noela Invernizzi, do Setor de Educação da UFPR, coordenadora da Rede Latino-Americana de Nanotecnologia e Sociedade e integrante do Comitê Consultivo na área de Nanotecnologia do MCTI:
“A regulação está longe de ser um processo meramente técnico, em que a melhor ciência é aplicada para estabelecer as regras mais apropriadas. Pelo contrário, trata-se de um processo em que diversos grupos, com diversos interesses e com poder bastante desigual – políticos, científicos, empresários, grupos sociais organizados, grupos sociais afetados, entre outros –, se enfrentam para avançar suas posições e no qual, com bastante frequência, as controvérsias científicas são utilizadas pelos diversos atores para fortalecer seus interesses”.
Até mesmo estabelecer uma definição para nanomaterial tem sido, em todo o mundo, um longo processo de negociação – e de difícil consenso. Uma definição é como uma linha divisória que separa o que é do que não é nanomaterial. Aqueles que querem chamar seus produtos de ‘nano’ e ficarem do lado de dentro da linha vão aprovar a definição; mas os que ficarem de fora, não. Também vão demonstrar insatisfação aqueles que não querem identificar seus produtos como ‘nano’ e forem posicionados do lado de dentro da linha.
Dependendo do ponto de vista – e do interesse envolvido –, sempre se poderá argumentar que a tal linha divisória poderia passar um pouquinho mais para a direita ou para a esquerda. E, nesse cabo de guerra, “as evidências científicas constituem apenas uma parte dos argumentos”, conforme adverte nossa colega Noela.
Se o processo de definir nanomaterial já é difícil, o de regular a nanotecnologia, então, é ainda mais complexo. Esforços de regulação têm sido realizados, inclusive no Brasil. A primeira proposta nesse sentido foi apresentada em 2005 pelo então deputado Edson Duarte (PV-BA).
Com base em pareceres elaborados por especialistas da área, o projeto foi arquivado sob argumentos como o de que a regulação de uma nova tecnologia poderia impedir a inovação.
Desde então, rejeita-se qualquer possibilidade de regulação da nanotecnologia que não seja exclusivamente baseada em uma concepção técnico-científica. Não defendo que se abandone essa concepção, mas tão somente que a ela se somem outras tantas concepções.
Basta lembrar que, vista sob outro ângulo, a regulação e suas exigências podem fomentar a inovação na forma de produtos mais seguros e socialmente adequados.
Novamente, recorro às palavras da professora Noela Invernizzi:
“Situar a regulação como um processo mais amplo, em que a dimensão de politics (grupos de interesse) atravessa permanentemente a dimensão de policy (elaboração da política pública) implica em pelo menos três consequências. A primeira é que a discussão sobre regulação deve ser abordada desde uma perspectiva interdisciplinar: não pode se limitar ao seu embasamento científico; deve abordar também as dimensões políticas, sociais, éticas, e de poder que a permeiam. A segunda é que há vários atores interessados e, portanto, é relevante para a democracia assegurar seus direitos de participação. A terceira é a dimensão da transparência de informação por parte dos atores intervenientes, única forma de assegurar a confiança pública nas instituições envolvidas e nos resultados obtidos”.
Esforços nesse sentido da regulação como um processo mais amplo, envolvendo uma diversidade de atores sociais, têm sido empreendidos pela Rede Brasileira de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente (Renanosoma) desde a sua criação, em 2004.
Em vários eventos, nacionais e internacionais, organizados pela Rede, o tema da regulação se fez presente e foi discutido de forma plural. Destaco também projetos de pesquisa multidisciplinar e ações de divulgação científica. Um trabalho de produção e popularização de conhecimentos que só é frutífero graças ao permanente diálogo entre professores, pesquisadores, dirigentes sindicais, representantes de ONGs etc.
Se só quem entende de nanotecnologia pode decidir sobre ela, então os conhecimentos sobre nano devem ser democratizados. A exclusividade da comunidade científica precisa ser deslocada pela valorização de diferentes formas de conhecimento. Em vez de aprofundar a assimetria de poder, investir no empoderamento de atores sociais interessados na nanotecnologia e que têm sido historicamente excluídos do processo decisório.
Contracorrente que pode levar a uma regulação da nanotecnologia diferenciada, porque socialmente legítima.
Fonte: Jornal da Ciência