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terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Era dos Pequenos, Micros e Nano Satélites (3)



José Monserrat Filho



Hoje faremos uma breve viagem no tempo. Vamos visitar o passado. Para começar, permitam-me aterrissar, em 1989, na Universidade Internacional do Espaço (International Space University - ISU), criada no Massachusetts Institute of Technology (MIT), EUA, em 1987, com o entusiástico apoio do escritor Arthur C. Clarke (1917-2008), autor do conto que deu origem ao filme "2001 - Odisséia no Espaço". A ISU segue viva e ativa até hoje em sua sede em Estrasburgo, França, já tendo graduado mais de 3.700 estudantes de mais de 100 países.

Em meados daquele 1989, vinte anos após dois seres humanos terem pisado na Lua pela primeira vez, apenas dois brasileiros figuravam entre os cerca de 120 alunos do então segundo curso de verão (dois meses e meio) da ISU: Antônio Fernando Bertachini de Almeida Prado - hoje renomado pesquisador, chefe da Divisão de Mecânica Espacial e Controle e presidente do Conselho de Pós-Graduação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) - e eu. Foi uma experiência rica e inesquecível. Tivemos um painel amplo, atualizado e prático das atividades espaciais em seus muitos e variados aspectos.

Lá, pela primeira vez, ouvi falar na Universidade de Surrey, sediada no Reino Unido, como pioneira no desenvolvimento de micros satélites. Por isso, veio-me a ideia de descer em Surrey, nesta viagem no tempo, para saber um pouco de tudo que ali aconteceu.

Quem nos conduz no passeio é ninguém menos que Sir Martin Sweeting, professor, doutor, diretor do Centro Espacial de Surrey e diretor executivo da empresa Surrey Satellite Technology Ltd (SSTL), hoje controlada pela EADS Astrium NV. Em 2001, ele proferiu histórica conferência na Academia Real de Engenharia (parte da Royal Society) sobre o tema "Micros e nano satélites - Um admirável mundo novo (Micro/NanoSatellites - A Brave New World).

Vamos ouvir trechos do que disse Martin Sweeting (The Guardian, 10/10/2001):

"No início, a vida surgiu em nosso planeta em escala molecular e, gradualmente, desenvolveu-se, por via de uma única célula, para organismos multicelulares, que cooperavam em colônias. Finalmente, apareceram pequenas criaturas complexas e móveis capazes de aproveitar as oportunidades de um mundo multidimensional. Através de um processo de seleção natural e apoiadas por um clima favorável, algumas espécies prosperaram e cresceram de forma excessiva, culminando com o reino dos dinossauros.

"A história da exploração espacial pelos humanos não é muito diferente. Ao longo de dezenas de milhares de anos, as primeiras tentativas da humanidade de compreender o Cosmos se restringiram a observações intrigantes feitos a partir da superfície de duas dimensões do nosso planeta. Medidas pequenas, mas essenciais, foram sendo tomadas de modo incremental, e avanços foram sendo alcançados até que, por fim, a humanidade, no século passado, soltou-se, logrando acesso limitado à terceira dimensão - como os primeiros anfíbios - graças ao transporte pela atmosfera. Mas, como a tecnologia humana se multiplica rapidamente, o próximo e mais profundo passo fora da nossa biosfera e na direção do infinito do espaço exterior ocorreu apenas uma geração depois.

"Cerca de 45 anos após os nossos primeiros passos no espaço, colocamos os pés em outro mundo, exploramos as vizinhanças e espiamos os recantos escuros do cosmos. Mais perto de casa, estabelecemos um posto tripulado na beira do espaço e usamos órbitas próximas da Terra para observar a conduta do nosso planeta (e de seus ocupantes) e prestar serviços de comunicações e navegação para muitos habitantes do nosso mundo. Os satélites que passaram então a orbitar a Terra evoluíram rapidamente e, como na era dos dinossauros, foram se tornando cada vez maiores - espaçonaves de cinco toneladas custando muitos 100 milhões de dólares eram e ainda são comuns.

"No entanto, como com os dinossauros, o clima mudou rapidamente na era pós-Guerra Fria e surgiu uma espécie menor, "de sangue quente", ágil e rápida no pensar, para competir no novo ambiente de espaço: nascia a era do micro satélite.

"A vida muitas vezes se desenvolve em lugares surpreendentes, onde em dado momento as condições são precisamente as próprias para promover um novo crescimento. Os micros satélites modernos emergiram, não de agências espaciais tecnicamente avançadas e bem financiadas, mas da Universidade de Surrey. no Reino Unido. Esta não é a hora de contar a cronologia detalhada do desenvolvimento dos micros satélites na Surrey, mas é interessante refletir sobre as circunstâncias que catalisaram tal inovação. Como de costume, não houve um fator único, mas uma confluência de personalidades, ideias, ferramentas e ambiente, que por coincidência estavam no lugar certo na hora certa.

"Meu fascínio pessoal tanto pelo espaço, quanto pelas telecomunicações, mais a percepção de que os dispositivos micro-eletrônicos emergentes no mercado comercial em meados dos anos 70 permitiram inventar funções complexas e sofisticadas com requisitos muito reduzidos de massa e energia, viabilizaram o "sonho" de um pequeno grupo de (então) jovens engenheiros que, munidos de minúsculo orçamento, pudesse construir, lançar e operar um pequeno satélite em órbita. Na época, claro, havia muitos profetas do apocalipse. Poucos acreditavam que esse satélite pequeno e barato, mesmo que fosse possível, pudesse ter qualquer uso prático importante. Houve até um debate sobre o que seria precisamente um pequeno satélite. Mas, da mesma forma que as anteriores observações de Edison sobre a corrente alternada - considerada "interessante, mas sem nenhum valor prático" -, aquelas ideias estavam ali para serem desafiadas.

"Os primeiros dois micros satélites da Surrey - UoSAT-1 e UoSAT-2 - foram projetados e construídos na universidade por pequena equipe de engenheiros pesquisadores, radio-amadores e acadêmicos. Lançados com êxito - "de graça" - pela NASA em 1981 e 1984, respectivamente, eles transportavam cargas desenvolvidas na Surrey para pesquisa e educação, sobretudo para demonstrar o potencial desses pequenos satélites e também investigar a adequação dos emergentes artigos de micro-eletrônica disponíveis no mercado (commercial-off-the-shelf - COTS) para uso no espaço.

"Muito se aprendeu - rapidamente, em primeira mão e por vezes a duras penas - com essas duas primeiras missões, não só em relação a problemas técnicos, mas também nas áreas de gestão e finanças. Em 1984, ficou claro que o governo do Reino Unido não iria adotar um programa nacional de satélite, independente da Agência Espacial Europeia (ESA), e que a ESA (e as indústrias aeroespaciais estabelecidas) era extremamente cética quanto à relevância dos micros satélites.

"Daí que se tornou necessário um modo sustentável de financiar a Surrey para capacitá-la a continuar o programa de pequenos satélites com acesso ao espaço a preços acessíveis e a atender às demandas de aplicações reais. Em 1985, a necessidade de catalisar aplicações industriais e comerciais mais amplas e de gerar renda regular para sustentar as atividades da área de engenharia de pequenos satélites na Universidade de Surrey - sem depender de financiamento público -, estimulou a criação da uma empresa na universidade, a Surrey Satellite Technology Ltd (SSTL).

"A SSTL forneceu um mecanismo formal para lidar com a transferência de tecnologias de pequenos satélite dos laboratórios de pesquisa acadêmica da universidade para a indústria, de forma profissional, mediante contratos comerciais. De 1984 a 1988, o SERC [Smithsonian Environmental Research Center] teve repentino interesse pelas possibilidades dos satélites menores e financiou algumas pesquisas em subsistemas e até mesmo um centro multi-universitário de pesquisas tecnológicas sobre mini satélites (T-sat). Mas o projeto tornou-se presa do pensamento convencional, cresceu dez vezes, virou um monstro e expirou antes de sair do papel. Apesar disso, o financiamento para pesquisa concedido pelo SERC à Surrey nos anos 80, usado em investigações essenciais sobre subsistemas de micros satélites baseados em COTS, gerou, desde então, cerca de 70 milhões de libras de retorno em receitas de exportação para o Reino Unido via SSTL.   

"Incorporando os mais recentes artigos de micro-eletrônica disponíveis no mercado (COTS), os dois primeiros micro satélites da Surrey - UoSAT-1 e 2 - utilizaram uma estrutura física bastante convencional - um "esqueleto" em que se montaram caixas de módulos contendo os vários subsistemas eletrônicos e cargas que incluíam um complexo tri-dimensional de interconexões.

"As experiências aprendidas com as duas primeiras missões, a necessidade de capacitar-se para acomodar variadas cargas úteis de diferentes clientes, sem ter que redesenhar e requalificar de cada vez a estrutura do satélite, o atendimento a uma lista de lançamentos-padrão, bem como a crescente demanda de densidade de empacotamento, compatibilidade eletromagnética, economia de fabricação e facilidade de integração - tudo isso levou a Surrey, em 1986, a desenvolver novo projeto modular de micros satélites com plataforma multi-missão.

"Esse micro satélite modular inovador não tem "esqueleto", e sim uma série de caixas de esboço padrão do módulo usinado de alumínio, empilhadas umas sobre outras formando um corpo em que os painéis solares e os instrumentos possam ser montados. Cada caixa modular abriga os vários subsistemas de micros satélites - baterias, condicionador de energia, tratamento de dados a bordo, comunicação e controle de atitude. As cargas estão alojadas de modo apropriado em módulos similares ou na parte superior da plataforma, ao lado de antenas e sensores de atitude. O uso de alumínio dá proteção anti radiação e boa condutibilidade térmica, sendo barato e fácil de alterar.

"O micro satélite emprega modernos e sofisticados circuitos eletrônicos disponíveis no mercado, para prover alto grau de capacidade. As cargas úteis de comunicações e de observação da Terra requerem plataforma que aponte para a terra e, assim, o micro satélite é mantido em 0.3A de nadir, empregando uma combinação de estabilização passiva de gravidade gradiente (que usa um boom de seis metros) e de circuito fechado de amortecimento ativo que usa eletroímãs operados pelo computador de bordo. A determinação da atitude é provida pelo Sol, por sensores do campo geomagnético e de câmaras do campo estelar, enquanto a posição orbital é determinada de forma autônoma em ± 50 metros por um receptor GPS de bordo.

"A energia elétrica é gerada por quatro painéis de GaAs de painéis solares montados em corpo único. Cada painel produz ~35W, armazenados numa bateria recarregável NiCd 7Ah. As comunicações são apoiadas por uplinks de VHF e downlinks de UHF, usando protocolos de link de pacote totalmente protegidos de erros, que operam em conjunto com terminais em estações de solo baseadas em PC. O sistema de manuseio de dados a bordo (OBDH) é a chave para a capacidade sofisticada do micro satélite.

O computador de bordo OBDH 80C386, coração do sistema, executa um sistema operacional multi-missões em tempo real com um disco de RAM CMOS em estado sólido. Há, além disso, um computador secundário a bordo, para compartilhar tarefas de computação intensiva e atuar como um back-up completo. A principal característica da filosofia OBDH é que todo o software a bordo do micro satélite é carregado após o lançamento e depois pode ser atualizado e recarregado à vontade pelo controle da estação de solo.

"Normalmente, o satélite é operado pelo principal computador OBC-386 e, em tempo real, pelo sistema operacional multi-missões. Todas as instruções de telecomando são registradas em um "diário" na estação de solo e, a seguir, transferidas ao OBC do satélite para execução imediata ou, mais comumente, em algum momento no futuro. A telemetria dos sistemas e cargas a bordo da plataforma é igualmente recolhida pelo OBC-386 e transmitida de imediato ou armazenada no disco RAM enquanto o satélite estiver fora do alcance da estação de controle. Os computadores OBC também operam os sistemas de controle de atitude segundo os algoritmos de controle que acolhem os insumos (inputs) de vários sensores de atitude e, em seguida, agem de acordo com eles. Assim, esse ambiente OBDH permite que um minúsculo micro satélite opere de modo grandemente complexo, flexível e sofisticado, habilitando o controle totalmente automático e autônomo dos sistemas de satélites e cargas úteis.

"As últimas plataformas SSTL de micros satélites ampliaram os subsistemas de apoio das comunicações de maior taxa de dados nas bandas S e X, o controle de atitude em três eixos que usa reação e volantes de inércia, a navegação autônoma que usa receptores de bordo GPS e propulsores de gás frio para manobras orbitais.

"Graças às missões regulares (quase anuais), as mais recentes gerações de componentes industriais podem ser introduzidas no satélite para propiciar saltos na capacitação - mas sustentadas a cada vez pela herança acumulada dos subsistemas que voaram no espaço antes. A arquitetura em camadas resultante alcança alto desempenho com redundância operacional, mas por meio de tecnologias alternativas e não por simples duplicação.

"Esse projeto modular de plataforma de micros satélites voou pela primeira vez em 1990 e desde então foi utilizado com êxito em 18 missões bem distintas, cada uma delas com diferentes necessidades de carga útil, permitindo que a espaçonave vá da solicitação inicial até a órbita (order-to-orbit) de forma regular em cerca de 12 meses.

"Entre 1990 e 2000, os micros satélites de Surrey desenvolveram continuamente suas capacidades, alcançadas gradualmente mediante lançamentos regulares. A ênfase sempre foi colocada sobre o uso de componentes COTS cuidadosamente selecionados, associado com um projeto de sistema resistente a falhas, um processo de qualidade total adequadamente dimensionado e um ethos de gestão mais típico da indústria de tecnologia da informação."

"E o que dizer do futuro?", pergunta Martin Sweeting ao final, e responde:

"Por enquanto, o grande satélite, ao lado de seus irmãos menores, ainda é necessário para prover comunicações de alta potência para pequenos terminais móveis ou de TV, a imagem da Terra com resolução inferior a um metro, e transportar instrumentos científicos que exigem grandes aberturas ou pesado sensores. Mas seus dias podem estar contados.

Não há dúvida de que os insetos são a espécie mais bem-sucedida na Terra: eles viram os dinossauros indo e vindo e, hoje, superam em número os seres humanos. Um único inseto, claro, raramente tem qualquer impacto significativo - mas uma horda de gafanhotos é muito diferente.

"Os atuais sistemas micro-eletro-mecânicos (MEMS) e as nano-tecnologias emergentes, impulsionados por demandas industriais e de consumo terrestres - não espaciais - vão em breve tornar realidade os pico e fempto satélites produzidos em massa, menores que um cartão de crédito.

"Um único desses satélites tem pouca aplicação prática, mas uma nuvem de femptos - coabitando o espaço - satélites com núcleos de IP intercambiáveis, inter-comunicações coerentes e o conhecimento de posição relativa precisa promete alta resistência a falhas, entidade reconfigurável em órbita em tempo real, que pode rapidamente se adaptar às demandas extremamente dinâmicas - para serviços de comunicações, sensoriamento remoto por radar ou observações ópticas. Não haverá mais satélites fixos e de grande configuração. E os dinossauros estarão no museu."

*José Monserrat Filho é chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da AEB, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, e diretor honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro pleno da Academia Internacional de Astronáutica