RIO - Eraldo Medeiros volta esta semana de Roma. Na cidade, sede da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), foi o único brasileiro a participar de uma conferência sobre entomofagia. A palavra esconde uma prática crescente mundo afora, mas para a qual muita gente ainda torce o nariz por aqui — a introdução de insetos na dieta humana. A quem considera que só alguns povos e participantes de reality show encaram esses bichos num prato, a FAO avisa: a França já importa 5 toneladas de lagarta seca por ano da República Centro-Africana. E tudo vai para a cozinha.
Nos próximos meses, um holandês entrará para a História. Seu feito: provar um hambúrguer de carne produzida em laboratório. A iguaria, criada a partir de células-tronco, ainda está no forno. Grupos de pesquisa de outros países aguardam ansiosamente a degustação. Se dela sair algo minimamente comestível, pode ser o primeiro passo para a aposentadoria da pecuária — atividade econômica que ocupa um terço da área terrestre do planeta.
A falta de espaço sobre a terra foi um dos estímulos para a aquicultura, o cultivo de algas marinhas. Esta produção, em 2008, chegou a 15,8 bilhões de toneladas — em cifras, R$ 12,7 bilhões. O Brasil importa cerca de R$ 384 milhões de algas secas e derivados, embora tenha potencial para depender apenas de sua costa. O carro-chefe deste mercado no mundo é a multifuncional Kappaphycus alvarezii, presente como aditivo ou espessante em sorvetes, iogurtes e cervejas, entre outros. Aqui, porém, os estados do Rio e São Paulo são os únicos autorizados a vendê-las. Apenas em Santa Catarina há 700 famílias esperando autorização do Ibama para juntar-se ao comércio.
Em Brasília, onde preside a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Pedro Antônio Arraes orgulha-se de seu laboratório de nanotecnologia, o único do mundo voltado à agricultura.
Nele se desenvolve uma película comestível. A ideia é simples: sabe aquele saco plástico onde se guarda a comida na geladeira? Que tal reforçá-lo, para que segure por mais tempo o sabor do alimento — e, depois, ingeri-lo também? Os testes foram bem-sucedidos até agora.
Insetos, carnes de laboratório, fazendas de algas marinhas e películas comestíveis são algumas soluções para um mundo que, em 2050, terá 9 bilhões de bocas. E, desde agora, incita preocupações sobre como tanta gente poderá ser alimentada.
No Brasil, embalagens comestíveis
Símbolo da culinária brasileira, o feijão, até o ano que vem, ganhará nova versão. Há três meses, sementes transgênicas do grão tiveram a produção e a venda aprovadas. Outros alimentos devem seguir o mesmo caminho, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), inventora do feijão geneticamente modificado.
O gosto, asseguram os pesquisadores, é o mesmo. Mas os prejuízos para os produtores serão menores. O novo feijão é resistente ao vírus do mosaico dourado, que contamina de 90 mil a 280 mil toneladas anuais do cultivo tradicional, inviabilizando a venda. O feijão transgênico teve as defesas reforçadas e ativadas mais cedo, para evitar o contágio em massa.
— O prejuízo causado pelo mundo por virose nas diversas culturas é de US$ 3 trilhões — ressalta o presidente da Embrapa, Pedro Antônio Arraes. — A tecnologia elaborada para o feijão abre uma nova porta. Sabemos que há controvérsia em relação aos transgênicos. Mas as mudanças que faremos são inócuas para o ser humano. As plantas podem ser mais eficientes, perder menos água.
A Embrapa desenvolve 180 projetos de estudo para aumentar a produtividade no campo. Um dos mais importantes é o da fixação biológica para as culturas de soja — a associação de leguminosas com bactérias, que “puxam” o nitroênio para a planta e, assim, evitam o consumo de fertilizantes.
Quanto menos produtos químicos usados na agricultura, mais natural é o alimento que chega à mesa e menor é o lançamento de poluentes no solo e em rios.
— Podemos fazer a fixação biológica também com milho e cana-de-açúcar — revela o coordenador de Estudos Estratégicos da Embrapa, Elísio Contini. — Como usamos poucos produtos nitrogenados, não jogamos ureia nos rios. É um ganho do meio ambiente, além de uma economia bilionária com químicos.
Mesmo com seu clima e proporções continentais, até 40 anos atrás o Brasil importava arroz, feijão, leite e carne.
A Embrapa foi criada em 1973 para formar pesquisadores na agropecuária e aumentar a produção. Hoje, são 47 centros de pesquisa — alguns dedicados a certos alimentos (como gado de corte e de leite), outros a biomas.
A Embrapa foi criada em 1973 para formar pesquisadores na agropecuária e aumentar a produção. Hoje, são 47 centros de pesquisa — alguns dedicados a certos alimentos (como gado de corte e de leite), outros a biomas.
Enquanto montava sua estrutura, a empresa pública testemunhou o Brasil rural tornar-se urbano. Mais de 85% de nossa população vive em cidades; o que, teoricamente, representaria um esvaziamento da produção agrícola. Não foi o que aconteceu. Em 1976, a produção brasileira de grãos era de 40 milhões de toneladas. Hoje, é quatro vezes maior. E, neste período, a área usada pelo setor cresceu apenas 31%.
Hoje, cientistas brasileiros já atuam na vanguarda de área de alimentos. Um dos laboratórios da Embrapa desenvolve películas comestíveis, cujo objetivo será aposentar o uso de plástico em embalagens de comidas.
— Você poderá, por exemplo, comer uma embalagem com gosto de maçã — explica Arraes. — É um produto biodegradável, que aumenta o tempo de vida do alimento guardado dentro dele. Além disso, não precisaremos esperar um século para que um plástico abandonado seja incorporado ao meio ambiente.
Quando receberem o aval para chegar ao mercado, estas invenções prometem dar ao país um papel estratégico no planeta daqui a 40 anos.
— De todo o aumento na produção alimentícia esperado até 2050, 40% devem vir do Brasil — avalia o presidente da Embrapa. — Esta é a expectativa das ONU para atender a 9 bilhões de pessoas. Creio que teremos condições de atendê-la.
Para fazer o dever de casa, não será necessário transformar biomas inteiros em pasto ou lavoura. A menina dos olhos da Embrapa é o Projeto iLPF — ou Integração Lavoura-Pecuária-Floresta. Nas fazendas-piloto em que foi implantado, planta-se grão e cria-se gado ao lado da floresta. O objetivo é saber se este sistema de produção retém ou emite carbono. E, também, quantas árvores devem ser plantadas para cobrir a emissão de metano pela pecuária.
Se o programa der certo, o país, além de aumentar a produtividade no campo, poderá ajudar a combater o aquecimento global.
Entre insetos e algas, um desafio técnico e cultural
Há dois anos, Eraldo Medeiros organizou um evento em Feira de Santana (BA) sobre o consumo de insetos. Daí veio um livro — “Antropoentomofagia” — e uma certeza que carrega até hoje, corroborada pela FAO:
— Insetos são alimentos e devem ser consumidos por todos — ressalta. — Eles são ricos em nutrientes.
Para o pesquisador, a aversão a insetos é uma questão cultural. Numerosos povos asiáticos e africanos consomem normalmente estes animais. Antigas tribos da América Latina também. Os astecas, por exemplo, não dispensavam um inseto. Noventa e uma espécies compunham o seu cardápio.
Medeiros, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, é um dos pioneiros no assunto no Brasil. Como um número crescente de especialistas em alimentação, ele vê nos insetos uma forma de aumentar a oferta de proteínas sem explorar ainda mais o solo e a água. Insetos têm muita proteína. Sua percentagem de proteína não raro é superior a 50% — caso das larvas de vespas ou das pupas de moscas.
O Brasil, segundo ele, ainda está distante de se tornar um grande consumidor de insetos. Mas, quando implantada aqui, o Norte do país a receberia com mais facilidade.
— Nesta região, os insetos já fazem parte da culinária dos ribeirinhos e de várias etnias indígenas — conta. — Mas também existe um comércio informal de formigas tanajuras em Minas Gerais e em Pernambuco. Eu, sempre que tenho a oportunidade, e que conheço sua procedência, como um inseto.
Enquanto os bichos expandem seus domínios, a inglesa Hanna Tuomisto dedica-se a um tema que, segundo ela, conta com a atenção de poucos grupos de cientistas. Hanna estuda o desenvolvimento de carne cultivada, feito através de células-tronco.
— Extraímos estas células, por exemplo, de porcos, para depois convertê-la em células musculares — explica a pesquisadora da Universidade de Oxford. — Elas, então, são cultivadas junto a nutrientes e vitaminas essenciais para que cresçam na quantidade desejada. O gosto da carne sofre influência de muitos fatores, como a textura e o teor de gordura. Podemos controlar tudo isso, mas ainda não temos certeza do sabor do produto final.
Especialista em impactos ambientais gerados pela agropecuária, Hanna enumera as vantagens da carne de laboratório: sua produção exige 99% menos terra, 90% menos água e libera até 95% menos gases-estufa. Cada quilo de carne produzido via pecuária convencional requer de 4 a 10 quilos de alimentos; com a nova tecnologia, são apenas 2 quilos.
— Se este método constituísse metade da carne que consumimos, a cobertura florestal do planeta aumentaria 50%, o equivalente a quatro vezes a área verde do Brasil — ressalta. — E mais espaço para a vida silvestre provocaria um incremento da biodiversidade.
Hanna admite, no entanto, ignorar o custo comercial da carne cultivada. Algo não desprezível, considerando que laboratórios e pesquisadores de célula-tronco custam muito mais do que a mão de obra dedicada à pecuária tradicional.
Outra área que se desenvolve velozmente é a da cultura de organismos marinhos. Algas, principalmente. A China, pioneira no setor, lidera é líder de mercado. Na América Latina, o Chile se destaca, mas o Brasil ainda tem um grande potencial inexplorado, segundo Alex Alves dos Santos. Pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), ele luta para que os estados do Sul possam comercializar a Kappaphycus alvarezii, cujo uso vai de vinhos a cosméticos, passando por carne vegetal congelada.
— O Ibama ainda não liberou o cultivo desta alga no Sul por ser uma espécie exótica. Mas ela não faz mal a qualquer outra planta daqui, e temos a temperatura ideal para seu crescimento — ressalta. — Só é perigoso produzí-la acima do Espírito Santo, onde há recifes de corais que poderiam ser invadidos pela Kappaphycus.
Ciência ajuda a alimentar o mundo
Representante no Brasil da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o moçambicano Hélder Muteia destaca a enormidade do desafio que temos pela frente para alimentar a crescente população mundial — seremos 9 bilhões em 2050 — de forma sustentável e num mundo cada vez mais quente. Em 2009, um em cada 6 habitantes do planeta estava desnutrido. E entre 2010 e 2011, a produção mundial de cereais caiu 1,1%. Para o especialista, somente a ciência e a tecnologia poderão ajudar o mundo a estar à altura do desafio. "O Brasil tem um papel fundamental nisso, pois possui muito conhecimento na área agrícola e pode contribuir para o desenvolvimento sustentável".
O Globo: Em 2009, atingimos um triste recorde mundial, com 1,023 bilhão de pessoas desnutridas. Este índice deveu-se a fenômenos como a seca na Rússia. Com a projeção de que eventos climáticos extremos vão se tornar cada vez mais comuns, podemos esperar novos recordes de desnutrição num futuro próximo?
Hélder Muteia: Os desastres climáticos sem dúvida representam um risco enorme aos esforços de combate à fome mundial, a exemplo da terrível seca que atingiu a região do Chifre da África em 2011, a pior dos últimos 60 anos. Mas eles são apenas parte do problema, há outros fatores, como o aumento e a volatilidade dos preços dos alimentos, que causam prejuízos aos pequenos agricultores, os mais atingidos pela fome. Afinal, 75% das pessoas que passam fome no mundo estão no campo. Nossa esperança é que a fome diminua no mundo. Até 2015 esperamos ter menos do que 400 milhões passando fome. Mas para isso, o mundo precisa estar preparado para produzir alimentos de maneira sustentável.
Acima de tudo, precisamos de uma nova plataforma institucional internacional, de novos atores com vontade política para combater a fome. Só recentemente, por exemplo, o G-20 incluiu o tema do combate à fome na agenda de discussões. Voltando aos desastres naturais, temos de nos preparar melhor para enfrentá-los e reduzir seus efeitos. Em um país de forte instabilidade social, um evento climático extremo tem um efeito devastador, como se observa em nações do continente africano. Isso gera aumento dos conflitos armados, o que dificulta muito o trabalho de ajuda humanitária nas regiões atingidas. Em áreas agrícolas, é preciso que haja um conjunto de ações que fortaleça o sistema produtivo no campo (acesso à terra, água, mercado e tecnologia ao pequeno produtor) e o uso de mecanismos de prevenção, como o mapeamento e a identificação do histórico de áreas atingidas.
O Globo: A produção de alimentos cresce hoje num ritmo que acompanha o crescimento da população?
Muteia: Nós temos muitos desafios. Como mencionei, a alta volatilidade de preços tem prejudicado muito nossos esforços. Apenas entre 2010 e 2011, ela empurrou cerca de 70 milhões de pessoas para a pobreza extrema, tornando-as ainda mais vulneráveis à fome. Também temos o desafio demográfico: em 2050 seremos 9 bilhões e a produção de alimentos deve crescer em 70%. Porém, entre 2010 e 2011, a produção mundial de cereais caiu 1,1% e o consumo aumentou em 1,9%. Isso afetou negativamente os estoques mundiais. Mas nós acreditamos numa recuperação sólida. Não só do ponto de vista da produção, mas também do acesso real aos alimentos pelas pessoas mais vulneráveis. O fortalecimento da produção e do consumo em âmbito local é uma peça-chave nesse mecanismo. Por meio dele, é possível combater a fome e dinamizar a economia ao mesmo tempo.
O Globo: Qual será, nas próximas décadas, o papel do Brasil na produção de alimentos? O crescimento de nossa produção, como é feita hoje, representa um risco ao meio ambiente, levando em consideração a expansão das fronteiras da agropecuárias para áreas de florestas?
Muteia: O Brasil é um país que aposta na agricultura. Essa aposta deve vir acompanhada de três elementos essenciais: sustentabilidade econômica, social e ambiental. A ciência já demonstrou que a base de recursos que nos alimenta tem os seus limites. O ambiente é feito de múltiplos sistemas que se sustentam em cadeia. Os solos, o fluxo das águas, a temperatura, as florestas, a fauna...
Eles formam uma cadeia de sustentação. Qualquer desequilíbrio nessa equação pode comprometer a vida no planeta. A agricultura mal concebida e mal implementada acarreta riscos: desmatamento, emissão de gases-estufa, uso excessivo de agroquímicos e degradação de solos. A ciência deve nos ajudar a encontrar os melhores caminhos para uma vida mais sustentável em todos os níveis. E o Brasil tem um papel fundamental nisso, pois possui muito conhecimento na área agrícola. A ciência vai contribuir para o desenvolvimento sustentável. Ela é parte essencial da solução para a questão ambiental.
O Globo: O governo brasileiro investe em produtos transgênicos, fixação biológica de milho e cana-de-açúcar e nanotecnologia na agricultura. Como o senhor analisa a aplicação dessas tecnologias em alimentos?
Muteia: As instituições científicas têm a responsabilidade de encontrar as respostas tecnológicas e propor as soluções para aumentar a produção com sustentabilidade. Há regras mundiais e nacionais que orientam esse exercício. Nós apoiamos toda pesquisa que promova os objetivos de combater a fome, dentro da legalidade e de princípios éticos.
O Globo: Os transgênicos, como existem hoje, já são mal vistos por parte da população. No futuro, quando se difundirem ainda mais, podem provocar uma reação ainda maior?
Muteia: A engenharia genética é hoje prática comum dos institutos de pesquisa. Muito do que produzimos e consumimos hoje é resultado de pesquisa em biotecnologia. Sabemos que o assunto causa polêmica. Se essa polêmica vai prevalecer ou não, dependerá muito da capacidade da ciência provar a existência ou não de riscos em determinado setor, dependerá dos passos que a tecnologia poderá dar. E dependerá também da imagem que o público formar desses alimentos.
Essa percepção é subjetiva, mas orienta o mercado. O importante é garantir que os alimentos transgênicos sejam devidamente rotulados.
Estamos num mundo democrático, em que a livre escolha prevalece. O mesmo acontece com a questão relacionada à agricultura orgânica.
O Globo: Em outros países, investe-se em soluções ainda mais polêmicas, como carne produzida em laboratórios, ou na alimentação com insetos. A FAO tem uma posição em relação a estes projetos?
Muteia: Devemos respeitar três elementos essenciais: o científico, o cultural e o social. A ciência nos dá respostas sobre o valor nutritivo, riscos e limites. Por meio dela, sabemos como uma boa dieta deve ter equilíbrio entre valores energéticos, proteicos, vitamínicos e minerais. Sabemos os potenciais riscos e excessos, os níveis de toxicidade... A cultura nos orienta para aquilo que é aceitável em determinadas regiões. As serpentes são fontes proteicas em alguns lugares. A carne de porco e seus derivados são comuns em outras culturas. Já os insetos são consumidos com voracidade por muitos povos. Em certas partes da Ásia a proteína animal não é consumida. Somos seres sociais. As sociedades são guiadas por seus princípios. E a alimentação, como um direito, deve ser exercida com dignidade. A exploração de novas fronteiras alimentares não pode ultrapassar as fronteiras da nossa dignidade.
Fonte: O Globo