Maria Guimarães
Num mundo invisível a olho nu, ínfimas partículas detectam substâncias, cápsulas minúsculas transportam medicamentos a pontos exatos no organismo, tubos dezenas de milhares de vezes menores que um fio de cabelo participam da recuperação de zonas poluídas. O universo dos materiais na escala nanométrica é cada vez mais amplo, revela usos de diversidade crescente e permite a construção de aparelhos cada vez menores.
As palestras do segundo encontro (veja vídeo) do Ciclo de Conferências do Ano Internacional da Química, realizadas em São Paulo no dia 12 de maio[2011], foram um passeio por essa paisagem normalmente oculta, mas também mostraram que ela não é misteriosa só para leigos. “Os engenheiros químicos que usam novos materiais não entendem nada de química”, brincou a coordenadora da conferência Rosario Bretas, da Universidade Federal de São Carlos. Ela mesma, engenheira, costuma considerar a química um problema. “Precisamos saber quanto usar de cada elemento e quais são as condições ideais para que se formem nanoestruturas úteis”, contou, ressaltando a importância das exposições que se seguiriam: os químicos Fernando Galembeck e Oswaldo Alves, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Henrique Toma, da Universidade de São Paulo (USP). O ciclo, que [foi] até novembro[2011], é uma iniciativa da FAPESP e da Sociedade Brasileira de Química como parte da celebração do Ano Internacional da Química com o tema Química: nossa vida, nosso futuro, promovida pela União Internacional de Química Pura e Aplicada em parceria com a Unesco.
Fernando Galembeck ressaltou a necessidade de se reconhecer que a ciência vive hoje muitos impasses. “Alguns tópicos do dia a dia, como o atrito e a eletrostática, são muito pouco conhecidos por cientistas de qualquer área, devido à falta de atenção aos fenômenos químicos envolvidos”, provocou. Segundo ele, é essa ignorância que permite que aconteçam explosões causadas por descargas eletrostáticas, como a que destruiu o Veículo Lançador de Satélites na base de Alcântara, no Maranhão, em 2003. “Não sabemos o que mantém as gotículas unidas para formar nuvens! Como elas têm carga, deveriam se repelir.”
Os estudos de Galembeck vêm mostrando que as superfícies têm propriedades elétricas inesperadas, derivadas da nanoestrutura química. Para aproveitar esse conhecimento, é preciso manter a mente aberta e fugir de muitos cânones estabelecidos. Um fenômeno central, ele mostrou, é o padrão de distribuição das cargas elétricas nas superfícies. “Ainda não encontrei uma superfície eletricamente lisa.” Com base nisso, o pesquisador criou e tem aplicado com sucesso um novo modelo, no qual os íons da água conferem carga às superfícies dos materiais, alterando suas propriedades. Segundo Galembeck, as moléculas de água penetram em qualquer material. Os primeiros artigos demoraram a ser aceitos, talvez pela própria novidade, mas hoje os resultados vêm sendo muito bem recebidos por especialistas.
O efeito da eletricidade na água é bem ilustrado por um vídeo com gotas que caem de uma agulha eletrizada. No início as gotas são arredondadas e o gotejamento é lento. À medida que a voltagem fica mais negativa o ritmo fica cada vez mais rápido e as gotas mais longas, até formarem um fio contínuo. “A atmosfera é um reservatório de cargas, e a transferência de cargas anula a tensão superficial que mantém a estrutura da gota”, explicou. O importante é perceber como, para avançar no desenvolvimento de materiais inovadores, é preciso voltar às raízes do conhecimento, sem hierarquizá-lo. “O que tem permitido costurar esse avanço teórico são teorias químicas antigas”, sintetiza Galembeck, que agora faz experimentos para capturar energia elétrica da atmosfera. Em escala reduzida, já que, brincou, ainda não conseguiu financiamento para colher raios em tempestades.
Auto-organização
A importância do comportamento dos elétrons, a base da eletricidade e da eletrônica, foi recorrente nas falas dos pesquisadores. Mas, para além da eletricidade, é imprescindível entender todos os parâmetros que afetam as propriedades dos compostos, que às vezes se formam por conta própria. À cata de novidades, Oswaldo Alves se põe na posição de observador dos fenômenos naturais para detectar a emergência da complexidade em materiais nanoestruturados. Nos materiais porosos ordenados, por exemplo, ele mostrou que a temperatura afeta as características das paredes que sustentam a estrutura. Temperaturas a partir de 800 graus Celsius (°C) faz essa estrutura colapsar.
A importância do comportamento dos elétrons, a base da eletricidade e da eletrônica, foi recorrente nas falas dos pesquisadores. Mas, para além da eletricidade, é imprescindível entender todos os parâmetros que afetam as propriedades dos compostos, que às vezes se formam por conta própria. À cata de novidades, Oswaldo Alves se põe na posição de observador dos fenômenos naturais para detectar a emergência da complexidade em materiais nanoestruturados. Nos materiais porosos ordenados, por exemplo, ele mostrou que a temperatura afeta as características das paredes que sustentam a estrutura. Temperaturas a partir de 800 graus Celsius (°C) faz essa estrutura colapsar.
A construção de nanomateriais não é novidade: “Há 20 anos já era factível construir quantum dots no Brasil”, afirmou Alves, se referindo aos nanocristais, semicondutores também conhecidos como pontos quânticos, com uma infinidade de usos, como nas telecomunicações e em equipamentos ópticos. A terminologia usada pelos especialistas é cabeluda mas, na prática, basta trabalhar com blocos de construção específicos e fornecer as condições ideais, como de temperatura, para que se forme uma estrutura com a morfologia e o tamanho desejados.
Um caso emblemático são os nanotubos, em geral à base de carbono como é o caso das folhas de grafeno, compostas por uma camada de átomos de carbono (ver texto “Grafeno na nova eletrônica”), enroladas. “Mas o grafeno é um semicondutor”, lembrou o pesquisador, ressaltando que usos diferentes exigem materiais com propriedades específicas. Ele conseguiu, em seu laboratório, construir nanotubos completamente inorgânicos (sem carbono) feitos de vanadato ou titanato, e nanobastões de trióxido de molibdênio, que, vistos num microscópio ultrapotente, se parecem com palitos de picolé.
Quando fez esferas de sulfeto de molibdênio, notou que elas tinham aparência estranha. A solução foi usar um microscópio com feixe de íons focalizados (FIB, na sigla em inglês), que permite manipular as partículas. “O feixe espalha as esferas como se fosse um jogo de bilhar”, comparou. Com essa ferramenta foi possível cortar uma das esferas e verificar que era oca. “Depois da concepção e da construção vem a aplicação, que é outra história.” As nanoesferas ocas podem servir como nanocarreadores, por exemplo, para levar medicamentos para endereços específicos no organismo. Outra aparição inesperada aconteceu ao produzir nanofios de vanadato de prata, que podem ter propriedades antibacterianas, decorados com nanopartículas de prata. Ao microscópio, essas minúsculas partículas tinham uma cara conhecida: pareciam o Mickey (ver vídeo “Mickey a serviço da ciência”). Antes de duvidar da seriedade do grupo de pesquisa, que fique claro que os pesquisadores não gastam tempo procurando construir personagens de histórias em quadrinhos invisíveis a olho nu. “Esse fenômeno de auto-organização não foi intencional, mas o olhar precisava estar preparado para enxergar”, contou.
Desenvolver novos materiais, para ele, pode envolver pôr uma roupa nova em velhos e conhecidos compostos, e aproveitar de forma inteligente os fenômenos de auto-organização, sobretudo quando se pensa em aplicações. “Se o nanomaterial for muito exótico, ele não tem história epidemiológica nem dados de nanotoxicologia, ficam maiores as dificuldades de conseguir aprovação, por exemplo, para uso clínico.”
Peça por peça
Igualmente em busca de novidades úteis, Henrique Toma, da USP, usa um enfoque que se aproxima mais de um construtor de modelos. “Procuramos fazer com que os componentes atuem de forma concatenada”, descreveu, uma especialidade conhecida como química supramolecular. O que ele considera um sonho é transformar a química de todos os dias numa química mais ordenada, dominando as características e tornando a molécula realmente inteligente.
Igualmente em busca de novidades úteis, Henrique Toma, da USP, usa um enfoque que se aproxima mais de um construtor de modelos. “Procuramos fazer com que os componentes atuem de forma concatenada”, descreveu, uma especialidade conhecida como química supramolecular. O que ele considera um sonho é transformar a química de todos os dias numa química mais ordenada, dominando as características e tornando a molécula realmente inteligente.
Ele tem consciência de viver num novo mundo, em que a molécula virou material e estruturas invisíveis movem a economia. Um exemplo são filmes de ouro com espessura de um bilionésimo de metro, tão finos que a luz que passa por dentro deles consegue interagir com os elétrons de superfície das duas faces. O ângulo em que a luz entra em ressonância com os elétrons, e é completamente absorvida, permite detectar material pousado na superfície com dimensões muito menores que um grão de areia. Essa ferramenta vem sendo usada no laboratório para monitorar DNA e estudar como ele interage com drogas e outros agentes químicos. Com esse tipo de técnica, Toma trabalha em desenvolver dispositivos para a medicina, para conversão de energia, e sensores eficientes e quase sem custo para alimentos, bebidas e fármacos, por exemplo. O cliente mais importante das inovações produzidas em seu laboratório é a Petrobras, que requer uma variedade de nanomateriais, como catalisadores e detectores de poluentes, para uso em campo.
A transferência de elétrons, essencial para todos os processos de formação de compostos, dá origem até a manifestações artísticas, como mostrou Toma. Seu grupo de pesquisa desenvolveu pigmentos com moléculas orgânicas especiais e íons metálicos que, quando borrifados ou mergulhados em solução com nanoferratos, revelam uma imagem por meio de transferência de elétrons entre as substâncias. “Costumava ser a abertura dos shows de química, os alunos mergulhavam o papel-filtro no líquido e de repente surgia a bandeira do Brasil”, contou. O processo deu origem à imagem que Toma fez em homenagem ao Prêmio Nobel recebido em 1983 pelo norte-americano Henry Taube, o primeiro a propor um modelo de transferência de elétrons. “É um resumo de toda a teoria que lhe rendeu o prêmio.” Ele não sabe como Taube interpretou a pintura quando a recebeu, mas o pesquisador da USP afirma que ela representa todos os elementos importantes no modelo desenvolvido pelo norte-americano. É um bom exemplo de princípios básicos da química dando origem a fenômenos inesperados, com um aspecto lúdico de lambuja.
Os três palestrantes deixaram claro que esse lado lúdico permeia o estudo da química. A investigação de fenômenos químicos, da formação de compostos e a observação do seu comportamento, é, para eles, uma constante fonte de deslumbramento. Galembeck estendeu aos estudantes e curiosos pela química o convite feito por Jean-Marie Lehn, químico francês ganhador do Prêmio Nobel em 1987, na inauguração do Ano Internacional da Química: “O livro da química está por ser escrito, a música da química está por ser composta. Convido-os a participar dessa obra de criação”.
Fonte: LNNano